terça-feira, 31 de maio de 2011

A “vida de castelo” no dia-a-dia

Cheverny

A finalidade dos castelos mudou com o tempo.

O objetivo primeiro foi essencialmente militar: defender a população local da invasão de povos estrangeiros, bárbaros ou muçulmanos.

O triunfo do cristianismo trouxe a paz para a Europa, perturbada é verdade pela ofensiva protestante e, mais tarde, pelo ódio anti-aristocrático da Revolução Francesa



Mas, nos últimos séculos, o castelo passou a ser uma condensação do passado de uma família nobre.

Dentro de seus austeros mas já decorados muros, essas famílias conceberam um sonho.

Alguém poderia chamar esse sonho de ‘conto de fadas’. E, de fato, não há ‘conto de fadas’ sem castelo.

Esse sonho gestado por uma estirpe a través dos séculos foi compartilhado pelas populações das redondezas.

Saint-Fargeau, Borgonha, França
É um sonho partilhado onde o nobre castelão opera aquilo que S.S. Bento XV chamou com luminosa precisão de “sacerdócio da nobreza”.

Como vive o nobre o dia-a-dia no grande número de castelos ainda habitados, mantidos e defendidos pelos seus legítimos proprietários?

Provavelmente, deve ser de modos extremamente diversos segundo as famílias, regiões e países.

O laureado escritor Jean d’Ormesson, filho do marquês de Ormesson,  membro da Académie Française, ex-diretor do diário “Le Figaro”, passou boa parte de sua infância no castelo de Saint-Fargeau que pertencia à família de sua mãe.

Salão de Saint-Fargeau, Borgonha, França
O nobre literato verteu no papel pequenas mas deliciosas cenas que ajudam a compreender como era a vie de château no castelo de sua família na Borgonha, França.

O relojoeiro de Roussette

Todos os castelos do mundo, na Escócia ou nos Cárpatos, na Boêmia ou no vale do Loire se orgulham de ter 365 quartos.

Nosso château tinha também 365 quartos. Mais ou menos. Nunca os contáramos.

Ele tinha um relógio de salão (pendule) em cada quarto, oito nos salões, dois no bilhar, seis nas bibliotecas. Não menciono os relógios de parede.

M. Machavoine vinha todos os sábados de Roussette para dar corda nos relógios.

Por que sábado? Para permitir aos relógios de soar, todos juntos, no domingo ao meio-dia.

Aos domingos, a dois minutos para o meio-dia, meu avô, recém chegado da Missa solene, punha-se num dos salões, onde nosso capelão ‒ convidado habitual dos domingos – não tardaria a chegar, portando sua velha batina, já meio esverdeada. Vinha atraído pelos sonhos açucarados, hélas, só servidos à noite, mas mais imediatamente pelo frango à la creme do almoço dominical.

Para provar que nada tinha de maníaco meu avô, a cada domingo, sentava-se sempre numa poltrona diferente, mudando até de salão.

Vaux-le-Vicomte
Ele tirava da algibeira o relógio de ouro que seu bisavô dera a seu avô no dia de seu aniversário, ao fazer vinte anos. E esperava.

Ao meio-dia todos os relógios do château se punham a bater ao mesmo tempo. A meio-dia e um minuto meu avô recolocava no bolso o relógio de seu avô e retornava à leitura de ‘Action Française’ ou às memórias do duque de Saint-Simon ou ainda ao ‘Congresso de Viena’, de M. de Chateaubriand.

Às vezes, passados três ou quatro minutos de meio-dia meu avô era arrancado de sua leitura pelo bater atrasado de um dos relógios. Então, por meio de um valet, ele chamava o intendente do château afim de que ele assinalasse a irregularidade a M. Machavoine.

A chave de cada relógio era depositada entre ninfas ou figuras rococós, entre colunas de pórfiro ou pendiam simplesmente. Mas a idéia de nós mesmos acertarmos um dos relógios nunca teria ocorrido a ninguém.

Em conseqüência, penso eu, de uma distração de M. Machavoine, aconteceu-me de ver parados relógios que consultávamos diariamente. Era preciso aguardar a próxima vinda de M. Machavoine para recolocá-lo em funcionamento.

Acontece que vivíamos numa ordem e numa hierarquia que se tratava de manter até os mínimos detalhes e onde o princípio “um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar” aplicava-se também aos homens – talvez, sobretudo aos homens.

O papel de M. Machavoine neste vale de lágrimas onde Deus nos mantinha era o de dar corda em relógios. O nosso era de esperá-lo e admirá-lo. E este era um prazer do qual eu não me cansava nunca.

(Fonte: Jean d'Ormesson, “Au plaisir de Dieu”, Ed. Gallimard, 1980, 626 páginas.)

Continua no próximo post


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terça-feira, 17 de maio de 2011

Castelo da Garça Branca: delicado, nobre, uma obra de sonhos


A Idade Média foi uma era histórica bem definida no tempo e no espaço.

Começou com a queda do Império Romano em 476 d.C. e concluiu com a queda de Constantinopla nas mãos dos turcos em 1453, segundo alguns historiadores.

Para outros o fim coincide com a descoberta de América.



Entretanto, eis um lado dos mais delicados em matéria de medievalismo: a Idade Média vai além do seu espaço e de seu tempo. Ela permeia outras épocas. Permeia este III Milênio sem rumo.

Porque ela está de acordo com a natureza humana que não muda nem no tempo nem no espaço.

Um exemplo: o Japão pagão teve sua Idade Média, seu feudalismo, seus cavaleiros (os samurais), seu imperador, suas iluminuras. Faltou apenas o doce influxo do Evangelho e da Santa Igreja Católica.

Os frutos do feudalismo japonês, embora viciado de paganismo, foram múltiplos. Vejamos um caso típico:

Estamos diante de uma fortaleza feudal do Japão — o Castelo da Garça.

As muralhas, até certo ponto, se parecem com nossos muros coloniais, com seus grandes beirais. São sólidas e sem nenhum ornato. Têm a poesia da obra que desafiou os séculos.

No fundo projeta-se, muito mais alta do que muralhas, a fortaleza feudal japonesa. Uma construção tão alva e delicada, que mais parece obra de sonhos.

Este castelo lembra, em algo, o castelo europeu medieval?

Sim. Embora na arquitetura ele seja profundamente diferente do castelo medieval da Europa, lembra-o quanto ao seguinte aspecto: no élancé do edifício.

O castelo europeu tem como característica principal as torres. Aqui não há propriamente torres. Entretanto, o papel que fazem os corpos de edifícios cada vez menores é, no fundo, o de uma torre. A silhueta evoca um pouco a idéia de uma torre, ou seja, de um corpo de edifícios que procura galgar os céus, que se perde no alto, indicando elevação de espírito e grandeza de alma muito acentuadas.

Porém, em que sentido o Castelo da Garça é diferente do castelo medieval? Este não tem, a não ser raras vezes, esta graça. O castelo europeu, tem-se a impressão de que deita as garras no rochedo. É constituído de torres fortes, prontas para desafiar o vento e o clima hostil.

No castelo medieval, os muros são guarnecidos de ameias e barbacãs para os guardas circularem, a fim de proteger a muralha contra o adversário. Em volta das torres há o fosso com água e a ponte levadiça.

Não se nota propriamente isso no castelo japonês. O corpo inteiro do edifício parece dissociado da luta. Não se tem noção, à primeira vista, de que haja um vigia espreitando dia e noite.

O castelo japonês é um edifício delicado, nobre, próprio a um povo voltado para o sonho. E que garante a sua incolumidade contra o adversário através da grossa muralha em volta dele. A vida do senhor feudal japonês parece um tanto alheia à luta e à defesa.

Ele é um contemplativo, vive em suas delícias, suas contemplações, sentado no chão, diante de uma mesinha, vestido com tecidos preciosos, bebendo chá, numa xícara de porcelana muito bonita, e pensando, pensando...


Nota: A fortaleza feudal de Himeji — na cidade que leva esse nome na província de Hyogo (Japão) —, também conhecida como Hakuro-jo ou Shirasagi-jo (Castelo da Garça Branca), começou a ser construído em 1333, tendo sido inteiramente concluído somente 230 anos depois.
Excertos de conferência proferida pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira sem revisão do autor.

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terça-feira, 3 de maio de 2011

Os castelos cristãos moderaram as guerras

A cavalaria foi o grande entusiasmo da Idade Média.

O sentido da palavra cavalheiresco, que ela nos legou, traduz muito fielmente o conjunto de qualidades que suscitavam a sua admiração.

Basta percorrer a sua literatura, contemplar as obras de arte que dela nos restam, para ver por todo lado — nos romances, nos poemas, nos quadros, nas esculturas, nos manuscritos com iluminuras — surgir esse cavaleiro do qual a bela estátua da catedral de Bamberg representa um perfeito espécime.



Por outro lado, é suficiente ler os nossos cronistas para constatar que esse tipo de homem não existiu apenas nos romances, e que a encarnação do perfeito cavaleiro, realizada no trono de França na pessoa de um São Luís, teve nessa época uma multidão de êmulos.

Nestas condições, compreende-se quais podiam ser as características da guerra medieval.

Estritamente localizada, reduz-se freqüentemente a um simples passeio militar, à tomada de uma cidade ou de um castelo.

Os meios de defesa são então muito superiores aos de ataque: as muralhas, os fossos de uma fortaleza garantem a segurança dos sitiados; uma corrente estendida ao longo da entrada de um porto constitui uma salvaguarda, pelo menos provisória.

Para o ataque, a quase nada se recorre, apenas às armas de mão: espada e lança.

Se um belo corpo-a-corpo arranca dos cronistas gritos de admiração, eles só têm desdém pelas armas de covardes — o arco ou a besta — que diminuem os riscos, mas também as grandes façanhas.

Para cercar uma praça, utilizam-se máquinas: catapultas, manganelas, como a sapa e a mina, mas confia-se sobretudo na fome e na duração das operações para submeter os sitiados.

Também as torres de menagem estão providas adequadamente: enormes provisões de cereais amontoam-se em vastas caves, que a lenda romântica transformou em “masmorras”, e arranjam-se de modo a ter sempre um poço ou uma cisterna no interior da praça-forte.

Quando uma máquina de guerra é demasiado mortífera, o papado proíbe o seu uso: o da pólvora de canhão, cujos efeitos e composição se conhecem desde o século XIII, só começa a propagar-se no dia em que a sua autoridade já não é suficientemente forte, e em que já se começam a esboroar os princípios da Cristandade.

Como escreve Orderic Vital, “por temor de Deus, por cavalheirismo, procurava-se aprisionar de preferência a matar. Guerreiros cristãos não têm sede de espalhar sangue”.

É corrente, no campo de batalha, ver o vencedor perdoar àquele que desmontou, e que lhe grita “obrigado!”.

Cita-se como exemplo a batalha de Andelys, conduzida por Luís VI em 1119, na qual se assinalam somente três mortos entre novecentos combatentes.

(Fonte: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)

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